Quando a escola é de vidro
Naquele tempo eu até que achava
natural que as coisas fossem daquele jeito.Eu nem desconfiava que existissem
lugares muito diferentes...Eu ia pra escola todos os dias de manhã e quando chagava,
logo, logo, eu tinha que me meter no vidro.É, no vidro!
Cada menino ou menina tinha um
vidro e o vidro não dependia do tamanho de cada um, não! O vidro dependia da
classe em que a gente estudava.
Se você estava no primeiro ano
ganhava um vidro de um tamanho.Se você fosse do segundo ano seu vidro era um
pouquinho maior.E assim, os vidros iam crescendo á medida em que você ia
passando de ano.Se não passasse de ano era um horror.Você tinha que usar o
mesmo vidro do ano passado.Coubesse ou não coubesse.Aliás nunca ninguém se
preocupou em saber se a gente cabia nos vidros.E pra falar a verdade, ninguém
cabia direito.
Uns eram muito gordos, outros
eram muito grandes, uns eram pequenos e ficavam afundados no vidro, nem assim
era confortável.Os muitos altos de repente se esticavam e as tampas dos vidros
saltavam longe, ás vezes até batiam no professor.Ele ficava louco da vida e
atarrachava a tampa com força, que era pra não sair mais.A gente não escutava
direito o que os professores diziam, os professores não entendiam o que a gente
falava...As meninas ganhavam uns vidros menores que os meninos.Ninguém queria
saber se elas estavam crescendo depressa, se não cabia nos vidros, se
respiravam direito...
A gente só podia respirar direito
na hora do recreio ou na aula de educação física.Mas aí a gente já estava
desesperado, de tanto ficar preso e começava a correr, a gritar, a bater uns
nos outros.As meninas, coitadas, nem tiravam os vidros no recreio. e na aula de
educação física elas ficavam atrapalhadas, não estavam acostumadas a ficarem
livres, não tinha jeito nenhum para Educação Física.Dizem, nem sei se é
verdade, que muitas meninas usavam vidros até em casa.E alguns meninos
também.Estes eram os mais tristes de todos.
Nunca sabiam inventar
brincadeiras, não davam risada á toa, uma tristeza!Se agente reclamava?
Alguns reclamavam.E então os
grandes diziam que sempre tinha sido assim; ia ser assim o resto da vida.
Uma professora, que eu tinha,
dizia que ela sempre tinha usado vidro, até pra dormir, por isso que ela tinha
boa postura.Uma vez um colega meu disse pra professora que existem lugares onde
as escolas não usam vidro nenhum, e as crianças podem crescer a vontade.Então a
professora respondeu que era mentira, que isso era conversa de comunistas. Ou
até coisa pior...
Tinha menino que tinha até de
sair da escola porque não havia jeito de se acomodar nos vidros. E tinha uns
que mesmo quando saíam dos vidros ficavam do mesmo jeitinho, meio encolhidos,
como se estivessem tão acostumados que até estranhavam sair dos vidros.Mas uma
vez, veio para minha escola um menino, que parece que era favelado, carente,
essas coisas que as pessoas dizem pra não dizer que é pobre.Aí não tinha vidro
pra botar esse menino.Então os professores acharam que não fazia mal não, já que
ele não pagava a escola mesmo...
Então o Firuli, ele se chamava
Firuli, começou a assistir as aulas sem estar dentro do vidro.O engraçado é que
o Firuli desenhava melhor que qualquer um, o Firuli respondia perguntas mais
depressa que os outros, o Firuli era muito mais engraçado...E os professores
não gostavam nada disso...Afinal, o Firuli podia ser um mal exemplo pra nós...E
nós morríamos de inveja dele, que ficava no bem-bom, de perna esticada, quando
queria ele espreguiçava, e até mesmo que gozava a cara da gente que vivia
preso.Então um dia um menino da minha classe falou que também não ia entrar no
vidro.Dona Demência ficou furiosa, deu um coque nele e ele acabou tendo que se
meter no vidro, como qualquer um.Mas no dia seguinte duas meninas resolveram que
não iam entrar no vidrotambém: - Se o Firuli pode por que é que nós não
podemos? Mas Dona Demência não era sopa.Deu um coque em cada uma, e lá se foram
elas, cada uma pro seu vidro...Já no outro dia a coisa tinha engrossado.Já
tinha oito meninos que não queriam saber de entrar nos vidros.
Dona Demência perdeu a paciência
e mandou chamar seu Hermenegildo que era o diretor lá da escola.
Seu Hermenegildo chegou muito
desconfiado:- Aposto que essa rebelião foi fomentada pelo Firuli. É um perigo
esse tipo de gente aqui na escola. Um perigo! A gente não sabia o que é que
queria dizer fomentada, mas entendeu muito bem que ele estava falando mal do
Firuli.E seu Hermenegildo não conversou mais. Começou a pegar as meninos um por
um e enfiar á força dentro dos vidros.
Mas nós estávamos loucos para
sair também, e pra cada um que ele conseguia enfiar dentro do vidro - já tinha
dois fora.E todo mundo começou a correr do seu Hermenegildo, que era pra ele
não pegar a gente, e na correria começamos a derrubar os vidros.E quebramos um
vidro, depois quebramos outro e outro mais dona Demência já estava na janela
gritando - SOCORRO! VÂNDALOS! BÀRBAROS! (pra ela bárbaro era xingação).
Chamem o Bombeiro, o exército da
Salvação, a Polícia Feminina...Os professores das outras classes mandaram cada
um, um aluno para ver o que estava acontecendo. E quando os alunos voltaram e
contaram a farra que estava na 6° série todo mundo ficou assanhado e começou a
sair dos vidros.Na pressa de sair começaram a esbarrar uns nos outros e os vidros
começaram a cair e a quebrar.Foi um custo botar ordem na escola e o diretor
achou melhor mandar todo mundo pra casa, que era pra pensar num castigo bem
grande, pro dia seguinte.Então eles descobriram que a maior parte dos vidros
estava quebrada e que ia ficar muito caro comprar aquela vidraria tudo de novo.
Então diante disso seu
Hermenegildo pensou um pocadinho, e começou a contar pra todo mundo que em
outros lugares tinha umas escolas que não usavam vidro nem nada, e que dava bem
certo, as crianças gostavam muito mais.E que de agora em diante ia ser assim:
nada de vidro, cada um podia se esticar um bocadinho, não precisava ficar duro
nem nada, e que a escola agora ia se chamar Escola Experimental.Dona Demência,
que apesar do nome não era louca nem nada, ainda disse timidamente:- Mas seu
Hermenegildo, Escola Experimental não é bem isso...
Seu Hermenegildo não se
pertubou:- Não tem importância. A gente começa experimentando isso. Depois a
gente experimenta outras coisas...E foi assim que na minha terra começaram a
aparecer as Escolas Experimentais.Depois aconteceram muitas coisas, que um dia
eu ainda vou contar...
Ruth Rocha
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